sexta-feira, 27 de novembro de 2020

Douro, o relatório geral da vindima 2020

 Um ano com condições muito difíceis, atípico e desafiante

A verdade é que, no Douro não há dois anos iguais e não existe o que se possa considerar como um ano "normal".

Os lagares da Quinta do Passadouro, Vale de Mendiz, Vale do Pinhão.

    A vindima de 2019 terminou em meados do mês de Outubro, com a chegada das primeiras chuvas de Outono, que se prolongaram pelos meses de Novembro e Dezembro, que foram meses bastante chuvosos, facto importante para a reposição das reservas de água nos solos, depois de meses de seca e de nenhuma ou insuficiente precipitação.

    Em meados de Dezembro, tivemos um final de Outono com tempo chuvoso, chuva forte, persistente e intensa em toda a região demarcada do Douro, também no Douro Superior que em regra tem valores de precipitação mais baixos. A depressão "Elsa" e a chuva intensa provocaram a subida do nível das águas do rio Douro (que subiu 11 metros no cais da Régua), a zona ribeirinha da vila do Pinhão foi inundada e no vale da Vilariça, na foz do rio Sabor, houve terrenos agrícolas inundados.

    As temperaturas, em geral, mantiveram-se de acordo com os valores médios para esta época do ano.

Inverno

    O Inverno marca o início de um novo ciclo na vinha, as temperaturas baixam e as vinhas entram numa fase de repouso vegetativo, dormência e descanso - o silêncio impera nas vinhas nesta fase do ano. Com este ciclo começam também os trabalhos de renovação da vinha, a poda das videiras, determinante para o seu crescimento, desenvolvimento e para o resultado final da colheita, para a qualidade do vinho e mesmo para a longevidade das plantas.

    O final do ano e o início de 2020 sem chuva e com tempo seco, depois, em meados de Janeiro a chuva voltou a toda a região. Foi, na realidade, um Inverno muito chuvoso que permitiu repôr as reservas de água nos solos e a água disponível.

    Um final de Janeiro, com temperaturas superiores à média e que se prolongaram até final de Fevereiro, registou-se tempo quente e seco. De acordo com o boletim climatológico sazonal do IPMA (Instituto Português do Mar e da Atmosfera), o mês de Fevereiro foi o mais quente desde 1931 e como consequência houve também uma diminuição da percentagem de água no solo utilizável pelas plantas.

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"a vindima de 2020 foi, sem dúvida, uma vindima desafiante. Juntamente com o momento sanitário delicado que vivemos, e que nos levou a estabelecer diversas medidas preventivas de combate ao COVID-19 de forma a evitar qualquer problema que pudesse pôr em cauda o normal desenrolar da vindima, o ano climático também não facilitou. 2020 acabou por se revelar um ano quente e precoce, com produções bastante reduzidas, em que castas como a Touriga Franca sofreram mais com o excesso de calor. O problema da falta de água aliado às altas temperaturas sentidas, colocou as vinhas mais expostas em stress, fazendo com que as uvas amadurecessem rapidamente, obrigando-nos a correr atrás do tempo e acelerar a vindima de maneira a não fugirmos da janela de maturação pretendida. Parece-me um ano que trará vinhos com bastante concentração e estrutura, robustos e com potencial. Resta-nos esperar e acompanhar a sua evolução.".

(Ricardo Pinto Nunes, Director de Produção e Enólogo da Churchill's)

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Quinta do Passadouro, Vale de Mendiz, Vale do Pinhão

Primavera 

    Foi uma Primavera com condições muito difíceis, em que foi necessário um acompanhamento permanente, uma atenção constante e imenso trabalho nas vinhas.

    Nos primeiros dias de Março registou-se alguma chuva por toda a região do Douro.

    Surgem os primeiros sinais de vida nas vinhas no início de Março, há vida nas vinhas que começam a despontar e a paisagem de vinha no Douro renasce, com a natureza a florescer. Nesta fase, o ciclo da vinha está adiantado, o abrolhamento(1) registado a 3 de Março e o lançamento das primeiras folhas foi precoce em cerca de 2 semanas, o mesmo sucedendo com a floração.

    A partir do momento em que as videiras começam a despontar termina o descanso e recomeçam os trabalhos na vinha que só vão terminar com o fim da colheita.

    Os últimos dias de Março e um início de Primavera com dias quentes e depois, surpreendentemente, no último dia de Março, houve uma queda da temperatura com frio que pintou de neve os pontos acima dos 700 metros de altitude (Mesão Frio, Vila Real, S. João da Pesqueira), um facto praticamente sem registo anterior nesta altura do ano (um efeito das alterações climáticas?), uma situação que pode causar danos nas rebentações da vinha. Por estes dias surgem também notícias de algumas vinhas que sofreram estragos com a geada (na sub-região Baixo Corgo) com a consequente redução da produção.

    No início de Abril prosseguem os trabalhos na vinha com a poda em verde, indispensável para assegurar o equilíbrio e o controlo da qualidade de produção da vinha. Em meados do mês, as folhas soltas e os primeiros cachos começam a aparecer. Segue-se a despampa ou desladroamento(2) e o primeiro tratamento.

    O começo de Maio com temperaturas bem acima da média (cerca de 2ºC acima dos valores médios) por toda a região vinhateira. Em plena Primavera, em meados do mês de Maio, entre os dias 7 e 14, registou-se alguma chuva em toda a região com consequências na vinha. A primavera chuvosa foi um dos factores de instabilidade na vinha.

    O tempo instável, calor, chuva e humidade, todos os factores reunidos para o aparecimento do míldio e do oídio - uma Primavera molhada significa sempre mais trabalho nas vinhas - que determinou maior necessidade da tratamentos e muito trabalho na viticultura, para prevenir e evitar o alastramento destas doenças da vinha, com o inevitável aumento dos custos e também com quebra na produção. Foi um ano em que houve uma grande pressão do míldio e do oídio nas vinhas em toda a região.

    Foi também um ano com uma nascença muito baixa (traduz o número médio de cachos por gomo deixado na poda das videiras) inferior à média, em que a floração das vinhas ocorreu na última semana de Maio.

    Este período caracterizou-se por uma grande irregularidade do clima em toda a região, com temperaturas altas e bastante acima da média na última semana de Maio (4 a 5ºC acima da média) e depois em Junho (dia 12), temperaturas a descerem e chuva em todo o Douro.

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"a vindima de 2020 começou muito cedo, na terceira semana de Agosto, tanto para as uvas brancas mais precoces como para as uvas tintas de zonas mais quentes e secas. Logo ao fim da primeira semana começou a verificar-se um fenómeno de empassamento, sobretudo na Touriga Franca que rapidamente levou a uma concentração elevada de açúcares na uva. Em termos quantitativos verificou-se uma quebra muito acentuada na produção, tanto no Cima Corgo como no Douro Superior. Já a sub-região do Baixo Corgo, significativamente mais fértil e húmida, teve ligeiras quebras na produção. Relativamente à qualidade, os brancos apresentam-se ricos e expressivos enquanto os tintos precisarão de mais tempo para se mostrar.".

(Óscar Quevedo, produtor vinhos Quevedo)

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Depois da prensagem, na Quinta de la Rosa, Pinhão


Verão

    Assiste-se à formação dos cachos, com os bagos a crescer e os cachos a fechar. A 20 de Junho, as primeiras alterações de côr e textura dos bagos que anunciam  o "pintor", de acordo com o provérbio popular "Santiago pinta o bago". Registou-se uma antecipação desta fase em cerca de 1 semana a 10 dias para algumas castas tintas como a Touriga Nacional e a Touriga Francesa.

    O amadurecimento da uva marca uma fase muito importante do ano vitivinícola, é o início da acumulação de açucares e perda de acidez no bago de uva, que são factores determinantes para a qualidade final do vinho. É através do sol que os cachos vão ganhando côr, açúcar e todos os diversos componentes que vão determinar os aromas e os sabores finais do vinho.

    Continuam os trabalhos na vinha com a orientação do crescimento da vegetação, ramos e folhas, para arejamento dos cachos.

    A 22 de Junho há uma mudança no clima, um aumento da temperatura e um baixo nível de humidade, sol intenso, abrasador e agressivo, que provocou escaldão nos cachos mais expostos (um fenómeno conhecido na região como "queima de São João"). Este fenómeno, que neste ano foi bastante violento e que também atingiu as vinhas a maior altitude, juntamente com a baixa nascença, provocou uma quebra na quantidade da produção. A Tinta Barroca e a Touriga Francesa foram as variedades que mais sofreram com estas condições.

Aquecimento global, os efeitos das alterações climáticas no ano vitícola

    Os últimos dias de Junho e o mês  de Julho, com temperaturas muito altas em toda a região demarcada do Douro, muito acima da média e com níveis de humidade muito baixos. No Pinhão, na Quinta da Roêda (Croft) registaram-se 8 dias seguidos com temperaturas máximas acima dos 40ºC e uma temperatura mínima também muito alta, o dia mais quente com uma temperatura de 42,73ºC. De acordo com o IPMA, Julho foi o mês mais quente desde 1931. Em geral, no país, os dados registados para o período de Janeiro a Julho, assim como para Julho de 2020, que foi o mais quente desde há 90 anos. O período entre Janeiro e meados do mês de Setembro foi o mais quente desde que existem registos (desde 1850) e dos 17 anos mais quentes registados, 16 ocorreram desde 2000 até agora. O que começa a ser um padrão consistente de anos mais quentes é uma preocupação para todo o Douro.

    Na 3.ª semana de Julho, a fase do pintor a terminar.

    A vindima aproxima-se, na primeira semana de Agosto os cachos estão em plena fase de maturação, em busca dos níveis de açúcar e acidez ideais. Neste início de Agosto, o tempo continuou seco e com temperaturas altas, acima de média, em alguns pontos das sub-regiões do Cima-Corgo e Douro Superior, registam-se temperaturas acima dos 40ºC.

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"... em termos climáticos foi um ano bastante atípico e bastante difícil, apesar de termos um inverno e uma primavera chuvosos que nos garantiu algum suporte hídrico nos solos, mas tivemos um ano quente, Julho talvez dos Julhos mais quentes das últimas décadas, e um Agosto e Setembro que ainda continuam a ser quentes, tivemos pouca nascença, tivemos problemas na floração e vingamento, tivemos que fazer mais tratamentos, houve queima de uvas, enfim uma série de coisas que nos leva a concluír que a nossa estimativa seja que nós tenhamos uma redução na produção na ordem dos 25 a 30% para ser bastante positivo...".

(Álvaro Martinho Lopes, Responsável pela viticultura da Quinta das Carvalhas, Real Companhia Velha)

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Vindima

    Confirmaram-se os sinais de vindima precoce do começo de Agosto, foi uma vindima que começou muito cedo, com as uvas brancas, entre meados e a última semana de Agosto.

    Entre 17 e 20 de Agosto foi muito importante a chuva que caiu em alguma quantidade em toda a região, e que em muitos casos chegou no momento certo para ajudar a aliviar os efeitos do calor excessivo na vinhas e para tentar conseguir algum equilíbrio nas maturações, todavia, teve também o efeito de acelerar o amadurecimento.

    Os dias muito quentes mantiveram-se durante a vindima causando escaldão em algumas vinhas e, numa primeira fase, dificuldade em iniciar a vindima, uma vez que o calor excessivo e a necessidade de água provocou algumas paragens e irregularidades nas maturações, numa segunda fase, a necessidade de vindimar e de levar rapidamente as uvas para as adegas para evitar a rápida perda de acidez, os níveis de açúcar mais elevados e o aumento da graduação alcoólica potencial, consequência de uma rápida desidratação dos bagos, tentando preservar algum equilíbrio ideal entre estes factores essências que se vão sempre reflectir nos vinhos.

    Houve uma necessidade de acompanhamento e avaliação permanente das maturações, de adaptações constantes na logística da vindima e idealmente uma coordenação perfeita entre viticultura e enologia.

    Setembro manteve-se com temperaturas altas, acima da média, e com registo de chuva em toda a região demarcada entre os dias 17 e 20.

    Foi uma vindima antecipada e muito curta, que terminou antes dos últimos dias de Setembro. Alguns exemplos, na Quinta de la Rosa, no Pinhão, foi provavelmente a vindima mais antecipada e mais curta registada nesta propriedade. Na Quinta da Roêda (Croft), também no Pinhão, foi a segunda vindima mais precoce registada (logo a seguir a 2017). Na Quinta dos Malvedos (Graham's), numa zona de transição entre as sub-regiões do Cima Corgo e Douro Superior, a vindima durou menos de três semanas. Na Quinta das Carvalhas (Real Companhia Velha), na sub-região do Cima Corgo, registou-se uma antecipação do ciclo em cerca de 10 dias e foi a vindima mais antecipada dos últimos 20 anos.

Depois da Vindima

    Foi indubitavelmente um ano bastante atípico e muito complicado e difícil, de baixa produção, com baixa nascença, cachos pequenos, uma vindima curta e com uma redução na produção de cerca de 30% e mesmo de 40% em algumas propriedades.

    Apesar das considerações gerais que aqui ficam registadas, nunca podemos esquecer que o Douro é uma região imensamente variada, em sub-regiões, microclimas, diferentes localizações das vinhas, diferente altitudes e exposições solares, as diferentes castas, enfim, diversos terroirs, o que permite sempre que existam casos particulares que escapem a alguns dos factores que caracterizaram o ano vitícola.

    Começou por ser determinante a instabilidade meteorológica na Primavera, nos meses de Abril e Maio, que favoreceram a ocorrência severa do míldio e oídio que obrigou a mais tratamentos na vinha. Depois, a floração não foi a ideal para os cachos vingarem e houve uma grande heterogeneidade nas maturações com produções mais fracas do que o habitual. Ainda, o calor excessivo e o escaldão que provocou nos cachos, e que se manteve durante a vindima dificultando o amadurecimento e o equilíbrio entre o açúcar, a acidez e o pH.

    Todavia, numa produção com grandes quebras, houve também maior concentração e intensidade dos vinhos produzidos, com mais estrutura, assim como os níveis de açúcar mais elevados permitiram fermentações mais longas e com maior extracção, no caso dos vinhos do Porto. Daqui em diante, resta acompanhar a evolução dos vinhos na adega.

    Apesar de todas as dificuldades, houve castas que revelaram todas as suas potencialidades nestas condições agressivas e extrema, desde logo a Touriga Nacional, Tinto Cão, Tinta da Barca e Sousão, assim como, destacou-se também, o comportamento das vinhas velhas que, em geral, revelaram grande capacidade de adaptação e resistência às condições adversas deste ano, com produções de qualidade.

Os "despojos" da vindima, Quinta de Nápoles, Vale do Tedo.

Notas:

(1) O abrolhamento da videira: o momento que marca o início do ciclo vegetativo da videira, que termina a época de repouso com o aparecimento dos primeiros rebentos ou a rebentação dos gomos.

(2) A despampa ou desladroamento tem como finalidade controlar o excesso de crescimento vegetativo da vinha e toda a rebentação inútil que dispersa os recursos naturais da planta, contribuindo para a qualidade final da uvas.

©Hugo Sousa Machado

Mais informação: 

Douro, a vindima de 2020: um testemunho


 

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