de Ervedosa do Douro: ao fundo, o Pinhão, o centro geográfico da região vinhateira do Douro. PtoPwine archive |
"Existem, pelo menos, três "douros" muito distintos, que diferem por causa do clima. Existe o Baixo Corgo, o Cima Corgo e o Douro Superior. Essas três sub-regiões existem devido à diferença climática: no Baixo Corgo estamos mais próximos do Atlântico, mesmo que separado pelas montanhas do Marão, a influência do mar faz-se sentir ao nível da temperatura e da chuva. É um clima mediterrânico-atlântico, em que chove bastante com temperaturas amenas quando comparadas com o resto da região. E conforme vamos subindo o rio, indo para oriente, temos o Cima Corgo, que é um clima puro mediterrânico - aumentam as temperaturas e a chuva diminuí. Depois passamos para o Douro Superior, um clima Mediterrânico-Continental com a influência da Meseta espanhola, e amplitudes térmicas de quase 50ºC; entre 2 - 3 graus negativos no Inverno a 50 positivos no verão. A precipitação é muito menor, menos de metade do que no Baixo Corgo, por exemplo. Só isto, origina regiões diferentes, vinhos diferentes e mesmo populações e culturas diferentes. Isto tudo dentro da mesma denominação de origem Douro. Daí eu ter feito vinhos vinificados exactamente da mesma forma nas três sub-regiões.
O solo, em geral, é de xisto (com alguns granitos pelo meio), mas a grande diferença destas três sub-regiões é sem dúvida o clima. É incrível como em tão curto espaço, em tão curta distância, o clima muda tanto. Trata-se de uma característica do território português; muda muito rápido de temperatura, de clima e também de solo, originando diferentes tipos de vinho, de tradições, de culturas. Por exemplo, no Douro Superior, para além da vinha cultivou-se sempre a amêndoa, a oliveira, mas não é assim no Baixo Corgo; por causa da influência dos monges cistercienses esteve sempre mais ligado à vinha.
Apesar de toda a região estar na altura controlada por estes monges, vindos da Borgonha pela - pela mão de D. Afonso Henriques o que quer dizer que a construção desta região vitícola está intimamente ligada à fundação de Portugal. Há efectivamente uma grande ligação entre o Douro e a Borgonha, e, apesar de já existirem vinhas no tempo dos romanos - responsáveis pela primeira revolução vínica no Douro há 2000 anos - forma os monges cistercienses que aprofundaram esse conhecimento. Digamos que havia uma espécie de controlo da região pelos monges de Cister, sendo que a maior parte estava concentrada no Baixo Corgo, perto de Lamego, apesar de no outro extremo, no Douro Superior, também existir um mosteiro cisterciense, o Convento de Santa Maria de Aguiar. Até parece que delimitaram a região já naquela altura!
Mas sem dúvida que o seu grande poiso foi o Baixo Corgo, com os mosteiros de Santa Maria de Salzedas, de São João de Tarourca e de São Pedro das Águias. Estamos a falar de há cerca de um milénio atrás, produzirem vinhos que já eram muito bons, lá nos terrenos de Cambres, em frente à Régua, o que naturalmente vai alterar as tradições das pessoas.
Quando o vinho do Douro começou a ser apreciado pelos países do norte da Europa, principalmente a Inglaterra, mas também a Alemanha, a Noruega, a Bélgica, a França, entre outros, vieram muitos comerciantes para o Porto fazer o negócio do vinho, que era algo que crescera brutalmente até, nos anos 40 do séc. XX, sermos o principal fornecedor de vinho de Inglaterra.
O recomeço da produção de vinhos secos no Douro, cujo grande boom aconteceu nos anos 90, fez com que muito mais produtores começassem a produzir o seu próprio vinho, em vez de venderem as uvas. E também houve comerciantes estabelecidos no Porto que vieram viver para o Douro, como foi o meu caso.
O meu trabalho aqui no Douro está a ser uma espécie de desconstrução, ou a procura do terroir duriense, que é composto por três factores: o Clima, o factor externo maior, que abrange uma maior área, daí as três sub-regiões, sendo que eu faço um vinho de cada sub-região, vinificando da mesma forma. Depois o Solo, no caso restrinjo a área, trabalho só na região do Douro Superior: o mesmo clima com a mesma casta - rabigato - trabalhando em vários solos de xisto. São parcelas muito próximas umas das outras, mas que devido a pequenas alterações - um ribeiro que passa perto de uma parcela há milhares de anos faz com que essa parcela tenha mais profundidade, do que uma na encosta com mais pedregosidade, ou uma outra com um xisto mais azul, mais cinzento ou mais castanho, ou uma com um veio de quartzo a passar no meio do xisto. Tudo dentro dos xistos. Eu não estou a trabalhar com o granito porque quero trabalhar a base do Douro que é o xisto.
Em meados do séc. XIX, aconteceram duas coisas em simultâneo: a expulsão das ordens monásticas que tinham todo o conhecimento e savoir faire na agricultura e também na vinha, incluindo tratados, que desapareceu de um dia para o outro - e a revolução industrial que aqui em Portugal foi mais ligeira e mais tardia. Estes dois factores fizeram com que 1000 anos de agricultura e os seus métodos de trabalho fossem relegados, de certo modo esquecidos. Ás vezes parece-me que houve uma espécie de tábua rasa, muito do conhecimento anterior foi abolido, começando-se a trabalhar só com um tipo de conhecimento muito recente e que não está ligado à terra, ao tempo, à espera. A revolução industrial trouxe a aceleração de tudo: a aceleração dos trabalhos na vinha, a aceleração da adega, sem tempo para parar, para sentir as coisas, para parar. Os métodos de vinificação que estou a experimentar são métodos ancestrais.
É assim que aparece o terceiro factor, depois do Clima e do Solo, o Humano, o produtor. O Homem pode alterar, e de que maneira, o vinho: o tipo de vinificação, o tipo de estágio, as castas. Importa lembrar que foi o homem que fez as castas. Penso que o Douro é, em toda a Europa, a região com mais castas permitidas para cultivo. São mais de cem castas diferentes com que aqui trabalhamos. Por exemplo, as vinhas mais velhas são misturas de castas, trata-se de uma cultura muito portuguesa e duriense, originando muitos vinhos diferentes. É o Homem a trabalhar.
Quanto à impressão humana do meu trabalho, diga-se que faço diversos vinhos que são experimentais: transformo a adega num laboratório e começo a vêr o que posso alterar, que técnicas de vinificação usar, que tipo de vinho dará, como é que aquele vinho vai comunicar com as pessoas, que tipo de informação veicula e se será essa informação mais fidedigna. Aqui, no Douro Superior, é uma área que de certa maneira permite que se faça o tipo de trabalhos que eu faço, porque é uma área com menos tradição vitícola, e como a tradição tem menos peso, abrem-se mais os horizontes, procuram-se outras coisas: a paisagem também muda oferecendo outras perspectivas. Efectivamente, é uma zona que tem tido uma certa dimensão laboratorial. Assim foi com o meu avô e com o meu pai. Parece ser uma região que puxa esse lado.
A vindima é algo de muito especial, mas financeiramente não é o melhor negócio, por isso me pergunto: porque é que fazemos vinho no Douro? Porque é que há tanta gente que continua a vir para o Douro? A investir no Douro, sabendo que são investimentos para gerações futuras? Uma terra tão dura climática e geograficamente - montanhas, vales... -, cujo solo é rocha, não é terra. Somos nós que temos de fabricar o nosso próprio solo partindo a pedra para ter terra, para plantar uma planta pequenina, para a fazer viver. Ou seja, há sítios muito mais fáceis, não há?
Mas, além disso, para lá do chamamento telúrico que existe em todo o vale do Douro, há o vinho, que é algo muito especial. A vindima chama as pessoas, põe-nas em transe. Vindimar não é a mesma coisa que apanhar azeitona ou ceifar trigo, sei lá! É algo caótico, parece que os deuses báquicos da loucura entram nas pessoas, elas ficam completamente eufóricas. Num outro tipo de cultura isso não existe. A cultura do vinho provoca-nos sensações muito fortes, seja a apanhar a uva, seja a pisá-la. Bebe-se vinho e trabalha-se muito. É um non-stop de trabalho durante 2, 3, 4, 5 semanas, e a um dado momento as pessoas esquecem o mundo que há ao redor, tudo anda ali à volta numa espécie de torpor erótico. É o culminar do trabalho de um ano inteiro. Trabalho imenso que tem de ser executado naquele momento preciso, sob pena de ficar tudo estragado. Tudo perdido. É a altura em que fica em fermentação, em ebulição. De repente, os vinhos começam a bulir, são massas que só aparentemente estão mortas. Há o momento trágico do corte da uva: tirar a uva da mãe, pô-la no lagar, pisá-la e de repente explode um vulcão, é a fermentação. Todos aqueles vapores conduzem a um estado de embriaguez e sensualidade. Lá está Baco! A que ninguém fica indiferente. Aqui, no Douro, existe um método de vinificação especial em lagar, uma espécie de bacia em pedra, para onde se deitam as uvas apanhadas durante o dia, e que são pisadas no fim da tarde e noite.
Essa pisa das uvas é muito singular. A boa pisa de uva, a que permite fazer os vinhos do Porto, principalmente os grandes "Vintage", está mais enraízada nas zonas do Cima e Baixo Corgo, não tanto no Douro Superior. Para se fazer vinhos do Porto fortes, que aguentem muitos anos em garrafa, é preciso uma pisa forte, capaz de extraír todos os componentes da uva. No Douro, como a maturação é muito boa, é possível uma grande extracção.
É uma extracção feita por homens, num movimento quase militar, homens em fila abraçados uns aos outros, que marcham em cima das uvas em total silêncio. Numa ponta, um único homem comanda o ritmo, com uns dizeres que às vezes parecem iniciáticos. Este é um dos grandes momentos da vindima: a pisa à noite quando as cigarras já se calaram, as mulheres deixaram de cantar, de falar e de rir, para aguentar a dureza do calor e do trabalho. É um momento único que trás outra aura à região.
O vinho do Douro e o vinho do Porto são a mesma coisa, têm a mesma base, a mesma origem. O vinho do Porto começou por ser aquilo a que hoje chamamos vinho do Douro, que é um vinho seco mas com mais álcool do que os vinhos secos normais. Tinha à volta 15-16 graus, por isso conseguia aguentar esse álcool natural. Era assim o vinho dos monges cistercienses: branco, clarete ou palhete. Os vinhos só começaram a ser tintos no final do séc. XIX, tintos carregados. Antes desse período, não havia interesse pelo vinho muito escuro. Os mediterrânicos preferiam sempre vinhos mais claros ou mesmo brancos. Os vinhos muito carregados nunca foram do gosto deles, incluíndo os Romanos, gostavam de vinhos mais finos. Os vinhos carregados surgiram para responder ao gosto dos clientes do norte da Europa. Foi a partir de então que começamos a chamar tinto ao vinho, que antes era vermelho ou branco. Aliás, nas outras línguas continua a usar-se a palavra vermelho, rouge, red, rosso. Só em português e espanhol se usa tinto. O vinho do Porto era isso. E começou-se a chamar vinho do Porto porque era expedido da cidade do Porto. Os consumidores, ingleses sobretudo, queriam não só os vinhos mais carregados mas também com mais álcool. Quando se percebeu que certas vindimas, cujo vinho tinha muito açúcar natural que não desdobrava completamente, e que era muito apreciado por eles, começou-se a trabalhar nesse tipo de vinhos. Quer isto dizer que o vinho do Porto é efectivamente um vinho de vinho da região do Douro, no fundo são a mesma coisa, a mesma região. Se existisse dentro da denominação de origem "Douro".três denominações do tipo "Baixo Corgo", "Cima Corgo" e "Douro Superior", estava bem, porque refere a diferenças climáticas e de solo. Mas a diferença de vinhos é uma mera causalidade histórica. Eu de certo modo tenho pena que o vinho do Douro, que tem uma longa tradição, não possa usar o nome "Porto". A "marca Porto", que é muito forte a nível internacional, podia ser aproveitada pelo vinho do Douro. No fundo, são a mesma coisa, sendo que um é seco e outro não. Seco, quer dizer sem açúcar e sem adição de aguardente. Efectivamente, os vinhos secos continuaram a ser feitos, mas só que caíram em desuso nos últimos 200 anos. Só recentemente, já no final do séc. XX, é que voltaram a ser trabalhados e as pessoas a apreciarem-nos. Diga-se que um vinho seco é muito mais delicado, porque não está protegido pelo álcool. O álcool usa-se sobretudo como forma de protecção do vinho do Porto. Para poder seguir viagem, para embarcar, adicionava-se aguardente que o impedia de virar vinagre. Enquanto que os secos ficavam por cá, eram para nosso consumo, nunca eram expedidos. Daí que no Douro ainda se chame ao vinho seco "vinho de consumo". Nas outras regiões diz-se vinho tinto, mas nós chamamos-lhe vinho de consumo. Aliás, os vinhos secos tiveram uma outra denominação bastante engraçada, chamavam-se vinhos virgens ou puros, por não terem sido violados pela aguardente.
Não sei o que vão dar as alterações climáticas. A única coisa que tenho como certo, é que as estações do ano já foram mais certas. Ou seja, sabia-se que numa cera altura ia fazer calor, noutra haveria chuva. As estações tinham um ritmo. E hoje em dia esse ritmo perdeu-se. Pode haver invernos quentes e sem chuva, o verão às vezes é demasiado quente. Eu, que faço os meus vinhos há cerca de quinze anos, e portanto não tendo ainda um grande historial, posso dizer que os últimos 3 anos foram muito complicados. E, se uma pessoa não tem a certeza que vai chover, então começa a pensar nas adubações, na rega e nos trabalhos de solo de maneira diferente. Vive-se numa incerteza que por outro lado também é engraçado, pois obriga-nos a pensar como fazer as coisas e, no meu caso, pôs-me a pensar na maneira biológica e biodinâmica de fazer a vinha e o vinho.
A agricultura biodinâmica, que está muito desenvolvida na Europa, é ainda incipiente em Portugal. Apesar de uma pessoa quando olha para o Douro, parecer ser um território biodinâmico, porque o Douro tem ainda algo importante, que é a biodiversidade e a policultura. Penso que temos de ter atenção ao futuro, porque a monocultura da vinha está a avançar e isso é perigoso. As monoculturas são sempre perigosas. Estou a trabalhar cada vez mais em policulturas - a amêndoa, o figo, a oliveira e os zimbros que dão bagas para fazer aguardente.
Tenho estado a desenvolver a agricultura biológica, vendo como se faz noutros lugares, noutros países, embora eu saiba que não há dois territórios iguais, e nem tudo o que é aplicado num sítio pode ser aplicado no outro. como se vê dentro do próprio Douro.
Temos de abrir a cabeça, vêr o que há na nossa região, não copiar mas procurar dentro do terroir que temos as soluções, trabalhar o tratamento da vinha com macerações de plantas, pensar no entorno, na forma de plantar a vinha. Há uma série de coisas que se praticam na viticultura biodinâmica que exige uma reflexão uma compreensão do sítio. O mundo rápido não é propício a isso, a este tipo de viticultura. Mas o caminho é esse, é inelutável, diria obrigatório. As pessoas já começam a perceber que os insecticidas e herbicidas que pomos na terra são veneno. Por exemplo, uma vinha que esteja em biológico, na adega não precisa que se faça nada, enquanto que uma vinha que tenha tratamentos tem um processo caótico de fermentação que não é linear nem nada fácil.
É importante que esta região evolua nesse sentido, o sentido mais óbvio diante de nós.".
Foz Côa, 8 de Agosto de 2018.
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Mas sem dúvida que o seu grande poiso foi o Baixo Corgo, com os mosteiros de Santa Maria de Salzedas, de São João de Tarourca e de São Pedro das Águias. Estamos a falar de há cerca de um milénio atrás, produzirem vinhos que já eram muito bons, lá nos terrenos de Cambres, em frente à Régua, o que naturalmente vai alterar as tradições das pessoas.
Quando o vinho do Douro começou a ser apreciado pelos países do norte da Europa, principalmente a Inglaterra, mas também a Alemanha, a Noruega, a Bélgica, a França, entre outros, vieram muitos comerciantes para o Porto fazer o negócio do vinho, que era algo que crescera brutalmente até, nos anos 40 do séc. XX, sermos o principal fornecedor de vinho de Inglaterra.
O recomeço da produção de vinhos secos no Douro, cujo grande boom aconteceu nos anos 90, fez com que muito mais produtores começassem a produzir o seu próprio vinho, em vez de venderem as uvas. E também houve comerciantes estabelecidos no Porto que vieram viver para o Douro, como foi o meu caso.
O meu trabalho aqui no Douro está a ser uma espécie de desconstrução, ou a procura do terroir duriense, que é composto por três factores: o Clima, o factor externo maior, que abrange uma maior área, daí as três sub-regiões, sendo que eu faço um vinho de cada sub-região, vinificando da mesma forma. Depois o Solo, no caso restrinjo a área, trabalho só na região do Douro Superior: o mesmo clima com a mesma casta - rabigato - trabalhando em vários solos de xisto. São parcelas muito próximas umas das outras, mas que devido a pequenas alterações - um ribeiro que passa perto de uma parcela há milhares de anos faz com que essa parcela tenha mais profundidade, do que uma na encosta com mais pedregosidade, ou uma outra com um xisto mais azul, mais cinzento ou mais castanho, ou uma com um veio de quartzo a passar no meio do xisto. Tudo dentro dos xistos. Eu não estou a trabalhar com o granito porque quero trabalhar a base do Douro que é o xisto.
Em meados do séc. XIX, aconteceram duas coisas em simultâneo: a expulsão das ordens monásticas que tinham todo o conhecimento e savoir faire na agricultura e também na vinha, incluindo tratados, que desapareceu de um dia para o outro - e a revolução industrial que aqui em Portugal foi mais ligeira e mais tardia. Estes dois factores fizeram com que 1000 anos de agricultura e os seus métodos de trabalho fossem relegados, de certo modo esquecidos. Ás vezes parece-me que houve uma espécie de tábua rasa, muito do conhecimento anterior foi abolido, começando-se a trabalhar só com um tipo de conhecimento muito recente e que não está ligado à terra, ao tempo, à espera. A revolução industrial trouxe a aceleração de tudo: a aceleração dos trabalhos na vinha, a aceleração da adega, sem tempo para parar, para sentir as coisas, para parar. Os métodos de vinificação que estou a experimentar são métodos ancestrais.
É assim que aparece o terceiro factor, depois do Clima e do Solo, o Humano, o produtor. O Homem pode alterar, e de que maneira, o vinho: o tipo de vinificação, o tipo de estágio, as castas. Importa lembrar que foi o homem que fez as castas. Penso que o Douro é, em toda a Europa, a região com mais castas permitidas para cultivo. São mais de cem castas diferentes com que aqui trabalhamos. Por exemplo, as vinhas mais velhas são misturas de castas, trata-se de uma cultura muito portuguesa e duriense, originando muitos vinhos diferentes. É o Homem a trabalhar.
Quanto à impressão humana do meu trabalho, diga-se que faço diversos vinhos que são experimentais: transformo a adega num laboratório e começo a vêr o que posso alterar, que técnicas de vinificação usar, que tipo de vinho dará, como é que aquele vinho vai comunicar com as pessoas, que tipo de informação veicula e se será essa informação mais fidedigna. Aqui, no Douro Superior, é uma área que de certa maneira permite que se faça o tipo de trabalhos que eu faço, porque é uma área com menos tradição vitícola, e como a tradição tem menos peso, abrem-se mais os horizontes, procuram-se outras coisas: a paisagem também muda oferecendo outras perspectivas. Efectivamente, é uma zona que tem tido uma certa dimensão laboratorial. Assim foi com o meu avô e com o meu pai. Parece ser uma região que puxa esse lado.
da Quinta da Costa de Baixo: ao fundo na outra margem do rio Douro, a foz e a Quinta do Têdo, mais ao fundo, a Quinta de Nápoles. PtoPwine archive |
Mas, além disso, para lá do chamamento telúrico que existe em todo o vale do Douro, há o vinho, que é algo muito especial. A vindima chama as pessoas, põe-nas em transe. Vindimar não é a mesma coisa que apanhar azeitona ou ceifar trigo, sei lá! É algo caótico, parece que os deuses báquicos da loucura entram nas pessoas, elas ficam completamente eufóricas. Num outro tipo de cultura isso não existe. A cultura do vinho provoca-nos sensações muito fortes, seja a apanhar a uva, seja a pisá-la. Bebe-se vinho e trabalha-se muito. É um non-stop de trabalho durante 2, 3, 4, 5 semanas, e a um dado momento as pessoas esquecem o mundo que há ao redor, tudo anda ali à volta numa espécie de torpor erótico. É o culminar do trabalho de um ano inteiro. Trabalho imenso que tem de ser executado naquele momento preciso, sob pena de ficar tudo estragado. Tudo perdido. É a altura em que fica em fermentação, em ebulição. De repente, os vinhos começam a bulir, são massas que só aparentemente estão mortas. Há o momento trágico do corte da uva: tirar a uva da mãe, pô-la no lagar, pisá-la e de repente explode um vulcão, é a fermentação. Todos aqueles vapores conduzem a um estado de embriaguez e sensualidade. Lá está Baco! A que ninguém fica indiferente. Aqui, no Douro, existe um método de vinificação especial em lagar, uma espécie de bacia em pedra, para onde se deitam as uvas apanhadas durante o dia, e que são pisadas no fim da tarde e noite.
Essa pisa das uvas é muito singular. A boa pisa de uva, a que permite fazer os vinhos do Porto, principalmente os grandes "Vintage", está mais enraízada nas zonas do Cima e Baixo Corgo, não tanto no Douro Superior. Para se fazer vinhos do Porto fortes, que aguentem muitos anos em garrafa, é preciso uma pisa forte, capaz de extraír todos os componentes da uva. No Douro, como a maturação é muito boa, é possível uma grande extracção.
É uma extracção feita por homens, num movimento quase militar, homens em fila abraçados uns aos outros, que marcham em cima das uvas em total silêncio. Numa ponta, um único homem comanda o ritmo, com uns dizeres que às vezes parecem iniciáticos. Este é um dos grandes momentos da vindima: a pisa à noite quando as cigarras já se calaram, as mulheres deixaram de cantar, de falar e de rir, para aguentar a dureza do calor e do trabalho. É um momento único que trás outra aura à região.
O vinho do Douro e o vinho do Porto são a mesma coisa, têm a mesma base, a mesma origem. O vinho do Porto começou por ser aquilo a que hoje chamamos vinho do Douro, que é um vinho seco mas com mais álcool do que os vinhos secos normais. Tinha à volta 15-16 graus, por isso conseguia aguentar esse álcool natural. Era assim o vinho dos monges cistercienses: branco, clarete ou palhete. Os vinhos só começaram a ser tintos no final do séc. XIX, tintos carregados. Antes desse período, não havia interesse pelo vinho muito escuro. Os mediterrânicos preferiam sempre vinhos mais claros ou mesmo brancos. Os vinhos muito carregados nunca foram do gosto deles, incluíndo os Romanos, gostavam de vinhos mais finos. Os vinhos carregados surgiram para responder ao gosto dos clientes do norte da Europa. Foi a partir de então que começamos a chamar tinto ao vinho, que antes era vermelho ou branco. Aliás, nas outras línguas continua a usar-se a palavra vermelho, rouge, red, rosso. Só em português e espanhol se usa tinto. O vinho do Porto era isso. E começou-se a chamar vinho do Porto porque era expedido da cidade do Porto. Os consumidores, ingleses sobretudo, queriam não só os vinhos mais carregados mas também com mais álcool. Quando se percebeu que certas vindimas, cujo vinho tinha muito açúcar natural que não desdobrava completamente, e que era muito apreciado por eles, começou-se a trabalhar nesse tipo de vinhos. Quer isto dizer que o vinho do Porto é efectivamente um vinho de vinho da região do Douro, no fundo são a mesma coisa, a mesma região. Se existisse dentro da denominação de origem "Douro".três denominações do tipo "Baixo Corgo", "Cima Corgo" e "Douro Superior", estava bem, porque refere a diferenças climáticas e de solo. Mas a diferença de vinhos é uma mera causalidade histórica. Eu de certo modo tenho pena que o vinho do Douro, que tem uma longa tradição, não possa usar o nome "Porto". A "marca Porto", que é muito forte a nível internacional, podia ser aproveitada pelo vinho do Douro. No fundo, são a mesma coisa, sendo que um é seco e outro não. Seco, quer dizer sem açúcar e sem adição de aguardente. Efectivamente, os vinhos secos continuaram a ser feitos, mas só que caíram em desuso nos últimos 200 anos. Só recentemente, já no final do séc. XX, é que voltaram a ser trabalhados e as pessoas a apreciarem-nos. Diga-se que um vinho seco é muito mais delicado, porque não está protegido pelo álcool. O álcool usa-se sobretudo como forma de protecção do vinho do Porto. Para poder seguir viagem, para embarcar, adicionava-se aguardente que o impedia de virar vinagre. Enquanto que os secos ficavam por cá, eram para nosso consumo, nunca eram expedidos. Daí que no Douro ainda se chame ao vinho seco "vinho de consumo". Nas outras regiões diz-se vinho tinto, mas nós chamamos-lhe vinho de consumo. Aliás, os vinhos secos tiveram uma outra denominação bastante engraçada, chamavam-se vinhos virgens ou puros, por não terem sido violados pela aguardente.
Não sei o que vão dar as alterações climáticas. A única coisa que tenho como certo, é que as estações do ano já foram mais certas. Ou seja, sabia-se que numa cera altura ia fazer calor, noutra haveria chuva. As estações tinham um ritmo. E hoje em dia esse ritmo perdeu-se. Pode haver invernos quentes e sem chuva, o verão às vezes é demasiado quente. Eu, que faço os meus vinhos há cerca de quinze anos, e portanto não tendo ainda um grande historial, posso dizer que os últimos 3 anos foram muito complicados. E, se uma pessoa não tem a certeza que vai chover, então começa a pensar nas adubações, na rega e nos trabalhos de solo de maneira diferente. Vive-se numa incerteza que por outro lado também é engraçado, pois obriga-nos a pensar como fazer as coisas e, no meu caso, pôs-me a pensar na maneira biológica e biodinâmica de fazer a vinha e o vinho.
A agricultura biodinâmica, que está muito desenvolvida na Europa, é ainda incipiente em Portugal. Apesar de uma pessoa quando olha para o Douro, parecer ser um território biodinâmico, porque o Douro tem ainda algo importante, que é a biodiversidade e a policultura. Penso que temos de ter atenção ao futuro, porque a monocultura da vinha está a avançar e isso é perigoso. As monoculturas são sempre perigosas. Estou a trabalhar cada vez mais em policulturas - a amêndoa, o figo, a oliveira e os zimbros que dão bagas para fazer aguardente.
Tenho estado a desenvolver a agricultura biológica, vendo como se faz noutros lugares, noutros países, embora eu saiba que não há dois territórios iguais, e nem tudo o que é aplicado num sítio pode ser aplicado no outro. como se vê dentro do próprio Douro.
Temos de abrir a cabeça, vêr o que há na nossa região, não copiar mas procurar dentro do terroir que temos as soluções, trabalhar o tratamento da vinha com macerações de plantas, pensar no entorno, na forma de plantar a vinha. Há uma série de coisas que se praticam na viticultura biodinâmica que exige uma reflexão uma compreensão do sítio. O mundo rápido não é propício a isso, a este tipo de viticultura. Mas o caminho é esse, é inelutável, diria obrigatório. As pessoas já começam a perceber que os insecticidas e herbicidas que pomos na terra são veneno. Por exemplo, uma vinha que esteja em biológico, na adega não precisa que se faça nada, enquanto que uma vinha que tenha tratamentos tem um processo caótico de fermentação que não é linear nem nada fácil.
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Foz Côa, 8 de Agosto de 2018.
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