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Antes de iniciarmos este percurso por algumas das principais e mais recentes alterações urbanísticas que invadem o centro histórico de Gaia, concretamente o conjunto urbano que constituí o Entreposto de Gaia(1), vale a pena relembrarmos as palavras do responsável pela autarquia de Vila Nova de Gaia, no âmbito da 1.ª conferência internacional "Cidades de Rio e Vinho (promovida pela Gaiurb, E.M. em parceria com a Câmara Municipal de Vila Nova de Gaia), em Março de 2015: "...na sua foz, na nossa foz comum ao Porto, o Douro é o espelho de um riquíssimo património que nos cabe saber preservar para toda a Humanidade...", "...é evidente que a nossa responsabilidade colectiva na preservação deste património é enorme...", e continuou com "...a rigorosa defesa deste património único é um desafio que exige atenção permanente, estudo e reflexão.".
Muito mudou desde aquele ano. Com estas palavras talvez pudéssemos confiar num firme e intransigente empenho com a "rigorosa" protecção e respeito por este "património único". Erro. Na realidade, este exercício de retórica, com o correr dos anos, revelou-se vazio e sem significado, totalmente ultrapassado pela realidade e "dinâmica" dos factos.
Fixemos então um ponto prévio, um enquadramento com a imagem do centro histórico de Gaia, uma das mais belas paisagens urbanas ligadas ao vinho, a paisagem histórica da encosta que alguém já chamou de maior adega do mundo. O seu património histórico são os edifícios e as estruturas que constituem os armazéns dedicados ao comércio e armazenamento do vinho do Porto, desde o séc. XVII, mas sobretudo a partir do séc. XVIII e que ocupam a encosta da margem esquerda do rio, que desce até ao Douro. Este património é o referencial histórico, o carácter e a identidade deste lugar, traduz uma ligação directa com o passado, é único e não existe em nenhum outro lugar do mundo, que resistiu ao tempo mas não resiste ao homem.
Assistimos hoje, a uma série acelerada de crueldades arquitectónicas, atentados monstruosos a que se sujeitam os armazéns históricos de Gaia, com "dinâmicas" e "incrementos", realizações pretensamente grandiosas, numa vaga furiosa pelo novo e moderno e com o desfiguramento brutal, irremediável e irreversível destes valores do passado. Recordemos as palavras de Carlos de Passos, na Nova Monografia do Porto, em 1938, que se aplicam perfeitamente a esta situação: "...julgo que não há terra do país onde tão insana e rapidamente se tenham demolido os valores arquitecturais do passado...", "...por certo, não foi só o tolo empenho modernizador que concorreu, par le bon motif, para tão magna destruição agora ampliada, também por causa igual pelo restaurador, pelo das grotescas reposições...".
Sombra 1: rua do Choupelo, junto ao hotel "The Yeatman". |
O centro histórico de Gaia é o local, onde actualmente, tudo é possível.
Em construção está uma espécie de moderno parque temático chamado "World of Wine" ou "WoW" (a que, muito apropriadamente, a arquitecta Mariana Abrunhosa Pereira, chamou "Disneylândia" do vinho), da responsabilidade do grupo The Fladgate Partnership (detentor das marcas de vinho do Porto, Taylor's, Fonseca Guimaraens, Croft e Wiese & Krohn, que é também, na crescente dimensão turística em que se tem empenhado, proprietário do hotel "The Yeatman" em Gaia), na linha de encosta descendente a partir do hotel The Yeatman (que por sua vez é também um caso de uma construção recente e pelo menos discutível nesta paisagem), objecto de um rapidíssimo licenciamento da autarquia (li que a construção se iniciou, a "colocação da primeira pedra", sem a licença necessária). Como outros, também nada a opôr a um parque temático dedicado ao vinho, para atraír e fascinar turistas, mas certamente noutro local, porque, de facto, é um projecto que pode ser construído em qualquer outro local, mas não aqui, porque aqui é mais uma contribuição decisiva para o desaparecimento dos históricos armazéns e para a descaracterização deste local.
O WoW (1)
O WoW (2)
É um projecto gigantesco que se impõe e destaca na paisagem, que não respeita o local que ficará irremediavelmente desfigurado e relativamente ao qual se referiu o director-geral da Fladgate Partnership, Adrian Bridge, nos seguintes termos "Quem não gosta do projecto (o WoW), também não gosta do que lá está agora...". Sem comentários, impressiona a leveza e arrogância da atitude, esquecendo que um dos motivos da sua existência desaparece com este projecto, em nome de empreendimentos turísticos e de números impressionantes, 100 milhões investidos, 30 mil hectares, 12 restaurantes, 5 museus, num admirável mundo certamente com muita interactividade, muitas lojas, e para quem o património de séculos é um obstáculo, ou pelos menos foi até agora.
Na rua do Choupelo, os antigos armazéns da Croft, com as estruturas interiores destruídas, sobram as paredes, nesta fase.
Do discurso de Adrian Bridge é clara a estratégia seguida pela Fladgate Partnership, com a aquisição de firmas de vinho do Porto, não apenas para alargar o seu portfolio de marcas e aumento do stock de categorias especializadas de vinho do Porto, mas também para aumentar o espaço disponível de que é proprietária neste preciso local de Gaia, não para uma séria recuperação dos espaços dos armazéns, mas para este tipo de empreendimentos incaracterísticos, com o conveniente argumento de que é a única forma de os manter vivos. Existem exemplos que provam que não é assim.
Sombra 2: o n.º 149 da rua Serpa Pinto, antigos armazéns da firma Wiese & Krohn.
Consideremos o caso recente da firma Wiese & Krohn, adquirida pela Fladgate Partnership em Junho de 2013. A W&K era uma casa de vinho do Porto de carácter familiar fundada em 1865 por dois empresários noruegueses, com grande reputação pelos seus vinhos do Porto envelhecidos em casco, sobretudo do estilo tawny colheita, e pelos seus preciosos stocks deste vinho generoso. Estava localizada na rua Serpa Pinto, n.º 149, num característico edifício com a porta principal encimada pelas letras art deco com a designação da firma, em pleno centro histórico de Gaia, um típico armazém onde envelhecia os seus vinhos desde o século XIX, diferente de todos os outros, onde se podia lêr na entrada "... viva o ambiente tradicional de uma cave histórica".
Imediatamente após a aquisição, os armazéns foram esvaziados e os stocks de vinhos removidos. Como aliás já tinha sucedido com as caves "Fonseca", na encosta do castelo de Gaia, conhecidas como as caves "vende-se". Uma vez que a Fladgate Partnership não optou por valorizar este espaço, desde sempre ligado ao comércio e armazenamento do vinho do Porto, encerraram as caves e este local está agora à venda e também à mercê de um qualquer "ímpeto dinâmico de desenvolvimento".
O extinto armazém da Wiese & Krohn.
Prosseguimos com mais um chocante inacreditável exemplo da descaracterização e empobrecimento progressivo do Entreposto de Gaia, a abertura de um supermercado "cash & carry", em plena avenida Diogo Leite, no espaço dos antigos armazéns da Real Companhia Velha com cerca de 3 séculos de história, paredes meias com as também históricas caves Ferreira. Os armazéns foram adaptados, entenda-se, totalmente arrasados no interior e destruídos, com os espaços interior e exterior irreconhecíveis, transformados num supermercado, com lojas para turistas e mais espaços de gastronomia, na parte de trás. Sempre com o beneplácito da Autarquia, que revela o seu distorcido entendimento do planeamento para o " compromisso com a rigorosa protecção do património...", mas certamente com "intervenções inteligentes", entenda-se, sem obstáculos e impedimentos aos negócios turísticos, sem condições que limitem o que quer que seja, assim é o "moderno" centro histórico de Gaia.
Sombra 3: a actual construção no local dos antigos armazéns da Real Companhia Velha, agora um supermercado.
Por sua vez, o responsável da empresa "Douro Azul", com a rara e fina sensibilidade que dedica aos assuntos relacionados com o património histórico, informou-nos...e desconsiderou-nos que, finalmente, passados tantos anos, a Real Companhia Velha voltaria a ocupar este lugar. Um entusiasmo fugaz, porque, convém lembrar que se trata apenas de mais uma loja de venda de vinhos num edifício totalmente modernizado.
A perspectiva da parte de trás das desaparecidas caves da Real Companhia Velha, um edifício irreconhecível.
É estranho, difícil perceber e pouco racional que quando falamos de empresas que dependem do turismo e que, por sua vez, o turismo é atraído pelo que só aqui existe, o património histórico ligado ao vinho do Porto, que ocupa o primeiro ponto de interesse em quem nos visita, se destrua e se descaracterize conscientemente, com uma argumentação básica, e se substitua por projectos e construções indistintos, iguais a tantos outros em qualquer parte do mundo. Enfim, quando pouco restar, certamente vai ser possível um qualquer museu interactivo oferecer a experiência única e virtual de passear no interior das antigas caves: explicar a evolução das técnicas construtivas, sobretudo dos interiores, as arcarias, as armações de madeira onde assentam os telhados, porque eram usados certos materiais na sua construção interior e não outros, as rampas, os pavimentos, as condições de ventilação, a luminosidade e a temperatura no decurso das estações do ano e inclusivamente simular o aroma sentido nestes interiores...
Sombra 4: o "moderno" interior do antigo Mercado da Beira Rio.
Um outro caso, o Mercado Municipal de Gaia ou Mercado da Beira Rio, também na Avenida Diogo Leite, na marginal de Gaia, depois de uma rápida remodelação em que se eliminou qualquer traço da sua antiga tipicidade, é agora mais um local indiferenciado convertido numa série de espaços ou balcões gourmet ou pelo menos dedicados a uma certa gastronomia difícil de definir. O interior em nada difere do interior de um qualquer centro comercial, com uma definição de espaços que segue um modelo, com os habituais materiais baratos e estereotipados, para um turismo pouco exigente.
Por aqui, nem rasto de qualquer "importância crescente que se vem atribuindo às questões do património", e ainda menos "da maior atenção da opinião pública para a valorização da identidade e da memória", apenas uma sublinhada reprodução acrítica e ampliada da novidade. Com raríssimas excepções, considerando a gravidade do assunto, entre jornais e revistas generalistas e dedicados ao mundo do vinho, críticos, jornalistas e figuras com responsabilidades em vários sectores, existe um estranho silêncio comprometido, uma incapacidade de indignação, ou pelo menos de opinião.
Entretanto, todas as fotografias que tirarmos agora (cortadas pelo turístico teleférico), serão históricas daqui a muito pouco tempo.
Na rua de Serpa Pinto.
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(1) O Entreposto de Vila Nova de Gaia: criado em 1926, tratava-se de uma zona exclusiva que funcionava como prolongamento da zona demarcada do Douro, para armazenamento e envelhecimento do vinho do Porto, onde teriam obrigatóriamente de se localizar os armazéns das companhias que se dedicavem ao comércio destes vinhos generosos. Todo o vinho do Porto teria de ser exportado através do Entreposto. Esta zona exclusiva terminou em 1986, quando se permitiu a exportação directa de vinho do Porto engarrafado aos produtores do Douro.
©Hugo Sousa Machado
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Grande artigo !...muito assustador... mas é o que temos.
ResponderEliminarMuitos parabéns.
Obrigado pelo comentário.
ResponderEliminarHSM